Frases

"[...]“Wanya” é um verdadeiro espectáculo visual e a prova cabal do grande talento de um desenhador, Nelson Dias, que infelizmente não deixou muita obra neste campo"
João Miguel Lameiras



domingo, 3 de fevereiro de 2008

DN Online - Isabel Lucas

'WANYA' RETRATO DE UM ÁLBUM DE CULTO

Cada letra desenhada. Uma a uma. A decalque. Uma caneta a passar por uma daquelas réguas transparentes com o abecedário completo. "O tempo corre no espaço de encontro aos seus próprios limites..." O início. E, como o resto, em letras de corpo sete, que é como quem diz: letras muito pequenas, alinhadas muitas vezes à esquerda, o que significava ter de escrever ou decalcar o texto ao contrário. De trás para a frente. Era o tempo a correr lento, longe do tempo dos computadores. Foram palavras escritas a partir de imagens; revolucionárias para a época em Portugal quando ainda não tinha acontecido o 25 de Abril . Pranchas que se competiam com o que de melhor se fazia na BD de referência europeia, inspirada em livros surripiados, à revelia da censura. Assim nasceu Wanya - Escala em Orongo, que agora é reeditada 35 anos depois da primeira publicação em 1973. Esta reedição com a chancela da Gradiva sai com as gralhas de uma escrita (edição) que não permitia correcções. Opção editorial, como conta agora Augusto Mota, professor de inglês reformado, autor da história que Nelson Dias desenhou. Os dois conheceram-se no liceu de Leiria, onde davam aulas. "Eu de Inglês ele de Desenho", conta Augusto Mota no dia em que faz 15 anos que morreu Nelson Dias, data escolhida para apresentar a reedição de uma obra que começou pelo desenho. "Ele apareceu ao pé de mim com seis pranchas e pediu-me para escrever um texto para aquilo. Achei os desenhos absolutamente fantásticos, com uma heroína inspirada fisicamente na mulher dele, e decidi experimentar. Funciono muito assim. Escrever para imagens. Uma escrita por sugestão", continua um dos autores de Wanya. Depois, o processo inverteu-se. Augusto Mota forneceu o guião a Nélson Dias e foram as palavras a guiar a pena do desenhador. Palavras que ele mesmo, já se disse, haveria de desenhar "com toda a minúcia" como afirma Augusto Mota, usando sempre no plural quando que fala da autoria de um livro que ontem só ele pode apresentar e que contava uma aventura, a aventura de Wânia ou seja, "a aventura do homem frente ao universo ilimitado da sua imaginação, onde a verdade parece nem sempre acompanhar o fulgor das galáxias distantes", lê-se no início. Esse "nós", de Augusto Mota, é um plural cúmplice de quem repartiu a surpresa de ser aceite pelo primeiro editor a quem mostraram a obra: A Assírio & Alvim. "Assinámos um contrato de 46 contos. Recebemos 20. Eu vinha a Lisboa de vez em quando buscar um cheque. O Nelson era mais tímido. Ficaram por pagar 26 contos. Nunca soube muito bem o que se passou." Augusto Mota fala disso e olha para a pilha de livros que tem ao lado e a placa a marcar 15 euros cada. Em 1973 custava 80 escudos, estava ao alcance de poucos. Faz uma pausa para falar descontinuidade ou do motivo porque um livro tão marcante como Wanya não continuou enquanto série "porque veio o 25 de Abril e as pessoas começaram a envolver-se noutras coisas. A BD não era o mais importante", diz. Diz ainda que nunca quiseram fazer de Wanya um livro panfletário "apesar do aproveitamento que dele fez uma certa esquerda e do modo como a censura interpretou uma das frases em que se dizia que o povo vinha finalmente do subterrâneo para a superfície". Chegou para levar Wanya ao índex, à lista dos livros proibidos, mas, mais uma vez, o 25 de Abril interferiu no percurso deste álbum. Derrubado o regime, o livro pode andar pelas livrarias e tornar--se culto para uma geração. "Mostra que não era uma obra politizada. Se o fosse não teria sobrevivido até agora", sorri Augusto Mota. "Foi importante. A BD passou a ter outro estatuto em Portugal. Já não eram só os fanzines ou o que se chamava livros aos quadradinhos. Passou a ter uma conotação literária." Augusto Mota lembra as "boas críticas, uma edição na Alemanha, a reprodução de uma dupla página representativa do século XX na capa do jornal espanhol Globo." Lembra isso e continua a dizer "nós". "Apanhou-nos desprevenidos." "Hoje, se o Nelson aqui estivesse estaria muito calado, quase a pedir desculpa por estar aqui."

Isabel Lucas
in http://dn.sapo.pt/2008/01/27/centrais/wanya_retrato_um_album_culto.html

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